Em Hamburg há um facto que abrange todas as idades e credos. As pessoas vestem-se bem ou pelo menos são criativas e destemidas a fazê-lo.
Podem andar cheios de ranho seja na cara ou na manga do casaco, mas os miúdos andam com pinta e parecem pequenos pinipons do arco íris de tanta cor que trazem vestida.
Podem andar com rasgos nas calças, nacos da carne ao léu em meados de inverno com -3 graus, mas o mundo é deles para desfilar, se têm frio não o demostram. Contudo acredito que a panóplia de hormonas aos saltos, inerente deste estado de graça que é a adolescência aquece-lhes o corpo, isso ou são temporariamente seres acéfalos como todos nós já fomos nesta idade.
Podem andar com pequenos aparatos andantes da família dos andarilhos, mas fique assente que ninguém o faz com mais classe que um idoso em Hamburg.
No meio deste povo, se há gente menos bafejada por este instinto, este senso de vestir-se bem ou ser criativo? Há. Carradas deles, mas os casos de sucesso abundam e são estes que são para aqui chamados.
Por vezes pode não ser do meu agrado, a combinação parecer-me feia, mas bato palmas pela ousadia de trajar tais trapos em praça pública. E no meio da loucura de padrões, rasgos ou comprimentos há algo, um "je ne sais quoi" que encanta o olho e penso, ela ou ele tiraram tempo, reflectiram, fizeram instropecção, dobraram-se sobre a questão o que vestir antes de sair de casa. Se calhar é talento puro e foi mesmo ao acaso, peça junta peça e deu aquele quadro. Artistas é o que são.
Mas o que seria de uma história sem ilustrações para fazer correr a galope os nossos pensamentos e criar opiniões. Posto isto, aqui vai, a primeiríssima de todas.
Um bem haja às pessoas que alegram os dias de nevoeiro cerrado que nem escuro é, mais cinzento que outra coisa, uma mistela de frio que se concretiza por vezes em fiapos de neve fingida a cair do céu, obrigando uma pessoa abrir o chapéu de chuva por aquela vergonha de "neve" molha-parvos.
Animação é um dos meus géneros de filme predilectos, não há como enganar. A história, o desenlace, a criatividade, os mundos que só vivem na imaginação e as próprias personagens são pequenos produtos de muito trabalho. Pura dedicação, de anos a arrumar e aprumar os mais ínfimos pormenores para darem-nos o prazer de um verdadeiro espectáculo.
Se há filmes de animação maus? Ui, péssimos, milhões deles. Contudo também adoro terror, e primeiro que se encontre algo que dê para exclamar de pulmões cheios "Sim senhor, até borrei a cueca", vê-se muita ruindade que nunca deveria ter visto à luz do dia.
Mas adiante! Nisto vi "Sing", e o que me ri, no final alguém disse-me que ia começar também a ver e fiquei com aquela sensação "bolas gostava de não ter visto para o puder ver novamente como se fosse a primeira vez". Se conhecem essa sensação que por sinal foi longa para escrever, sabem do que falo, do vazio que fica após algo que foi muito bom de assistir e fica-se ali pávido que nem um órfão abandonado na ruela. É que tudo o que vem a seguir para preencher este buraco fica meio que meh, solala, nem é carne nem é peixe.
A história do filme é simples, um dono de um teatro que está em vias de falência, encontra como solução montar um espectáculo de talento muito ao género America's Got Talent. Coisa nova e nunca vista, pelo menos na realidade em que ele vive. E partindo daí, surgem os mais variados cantores, pequenos ou grandes, agudos ou graves, os maus e claro, os bons de se aplaudir até em pé.
Já falei que é tudo com animais? Pois é, animais cantores, com histórias de vida complicadas. Quebrar rotinas, ultrapassar medos, alcançar os sonhos é esta a linha de orientação do filme. Poderia ser só isto, básico só para crianças mas há ali qualquer coisa, o elemento "adulto" meio que escondido, que lhe confere outra dimensão que a nós não nos escapa e apreciamos. Não esquecendo que por trás destas vozes há nomes de peso em Hollywood, destacando Reese Witherspoon como a fabulástica porca Rosita e o Matthew McConaughey como o invencível coala Moon, dono do tal teatro.
Eu gostei e muito, veio preencher o tal vazio que o "Kubo e as Duas Cordas" deixou, nem adeus disse. Ingrato, à falta de algo pior para lhe chamar.
Quando entras num quarto e vem logo aquele ar, aquela lufada que não precisas que ninguém te diga mais nada, é certo e sabido. Directa e artilhada com tudo o que houver para limpar este mundo e o outro, vais confiante, sem medos e diriges-te ao doente e reparas que as mãos ja há muito que foram brancas cor de pele, agora estão uma mistela de sujidade, luvas castanhas até quase a roçar o ombro.
Cautelosa, que há perigo iminente ali, sem muitas pressas e atenta ao teu redor mudas a fralda e numa questão de segundos, numa fracção do tempo existe todo um movimento, sem dares por isso, vês garras em vez de mãos, tudo enlavado em merda, e elas vêm direito a ti. Mais precisamente aos teus braços, tu reages, tu tentas escapar, ser mais rápido, gritas no teu íntimo mas tão alto que dói, rezas e sentes mas se sentes o verdadeiro pânico. O pânico do toque, daquele toque.
E foi tarde demais, elas já estão ali, a cravarem-se nos teus braços, sedentas por atenção e tu respiras fundo e pensas, não há desinfectante suficiente que lave isto, esta dor, esta sensação de caca de outrem entranhada na tua epiderme, a criar casa na tua pele, nos teus poros quase em vias de chegar às veias.
Aconteceu-me hoje. Acontece-me mais vezes do que gostaria. Puro pânico.
Fui fazer o meu Cartão de Cidadão, o outro estava em vias de caducar e lá me dirigi ao consulado de Portugal em Hamburg. O consulado português é um espaço que tem como possíveis reacções, neuras, dores de cabeça, tonturas, nervosismos, ler rodapés de folhetos sobre seguros de carros, bater o pé até fazer buraco, vaguear vezes sem fim, bufar, despentear o cabelo e por fim pensar uns quantos nomes feios e atribuí-los aos funcionários. Toda uma panóplia de reacções que são exacerbadas se a pessoa tiver feito noite, dormido duas horas, correr para o dito sítio onde ainda espera mais 45 minutos depois da hora marcada.
Fui um animal, uma besta sem paciência ali sentada. Só pensava em dormir e na enorme injustiça do mundo. Gente sem noção da realidade ou de relativização, falta água em África e eu ali indignada. Tristeza, culpo as duas horas de sono que não foram refrescantes o suficiente.
Mas nisto, eu tinha uma luta pelo meio, há cinco anos que vivia com aquele dado que angustiava-me, aquela décima que faria a diferença. Então lá me coloquei de frente para a máquina e quando ela começou a fitar-me, cresci, endireitei as costas e as minhas esperanças torciam todas para que acontecesse. Por favor, faz com que aconteça é um erro de cálculo, tu consegues desta vez.
Pois, não aconteceu, que a vida não dá limões para fazer limonada à toa, e tenho um Cartão de Cidadão novo, uma foto horrível que não sai do registo desde 91 e o meu lindo e farto 1 metro e 59 centímetros. Poderia ser 60 mas isso já é só para gente grande.
Ps:. Imaginam o que é ter 1,59 em Hamburg, esta terra de gigantes não foi feita para a minha medida. Nem os espelhos são meus amigos.